O império português não foi o nazismo

Na história do império colonial português houve muitas páginas cruéis e sangrentas, houve muitos momentos de abuso que não devem ser ignorados nem menorizados, mas dificilmente se poderá acusar os nossos antepassados de terem seguido, ao longo de séculos, políticas sistemáticas de genocídio.

O historiador Francisco Bethencourt expôs-nos recentemente o seu pensamento sobre o que deveria ser a política de memória em Portugal. Já contestei uma parte desse pensamento — a que diz respeito ao ensino da História — e chegou agora a vez de contestar uma segunda parte, igualmente errada, mas mais subterrânea e venenosa.

Porquê? Porque para fundamentar e escorar as suas ideias sobre Portugal, Francisco Bethencourt começou por explicitar a política de memória seguida na Alemanha a respeito do passado. Não do passado alemão em geral, mas apenas do período nazi, uma fatia da história recente que os germânicos e o resto do mundo consideram abjecta, execrável, criminosa. Bethencourt alongou-se a enunciar algumas iniciativas que a Alemanha tem tomado com o propósito de manter a sua população bem informada sobre os malefícios do nazismo, e explicou que, naquele país, “o passado é confrontado diariamente para que não se volte a repetir.”

Passou, depois, por comparação, a apontar o que faltaria fazer em Portugal a respeito da memória do império colonial, advogando que o nosso país devia cortar “com a narrativa herdada da propaganda salazarista” e desenvolver, relativamente ao seu império colonial, a mesma política de memória que a Alemanha tem quanto ao nazismo. Estabeleceu, assim — apoiando-se explicitamente em Frantz Fanon e outros —, uma equivalência entre o regime nazi, com os seus campos de extermínio e o seu enorme cortejo de atrocidades, e algumas das acções violentas e cruéis praticadas em certas partes do império português, no decorrer dos séculos, nomeadamente o tráfico transatlântico de escravos.

É muito importante notar que Francisco Bethencourt não nos falou da política de memória seguida pela Alemanha a respeito do seu império colonial — que também o teve —, nem do seu tráfico negreiro — em que também se envolveu, ainda que em pequena escala —, mas sim a respeito do nazismo. Ou seja, quis comparar alhos com bugalhos e ao fazê-lo, induziu quem o leu a olhar por lentes distorcidas e a criminalizar ab initio toda a história da colonização portuguesa.

Ora, há que começar por dizer que. ao invés do que sucede com os alemães relativamente ao nazismo, os portugueses — excepção feita às pessoas de tendência woke e politicamente correcta — têm geralmente orgulho nas realizações dos seus antepassados e no império que eles construiram. Isso não é atribuível à propaganda salazarista, não se trata de uma deformação dos espíritos causada por essa propaganda, como Francisco Bethencourt sugere. É algo mais profundo, que vem muito mais de trás e que está, na sua origem, relacionado com a gesta dos Descobrimentos.

Como dizia Tavares de Macedo, em 1842, “o lugar que os Descobrimentos dos portugueses lhes deram na história geral do mundo é tão belo aos nossos olhos, e tão invejado dos estrangeiros, que o primeiro lado por onde qualquer português logo encara os nossos estabelecimentos ultramarinos é como herança de nossos maiores, como um vínculo de glória que a todos nos enobrece”. Por isso, e ao contrário do que acontecia com outras potências coloniais, não era aceitável que Portugal se desfizesse desse império, ainda que, em certas fases, ele tivesse implicado não lucros, mas sim despesas. A Dinamarca ou a França podiam vender — e efectivamente venderam — parte dos seus territórios ultramarinos, mas isso não era viável em Portugal. Se tal coisa se fizesse, as almas dos antigos cavaleiros portugueses viriam, de praias distantes, como dizia Alexandre Herculano, nas Cortes, em 1840, inquirir dos vivos: “Que fazeis do legado de glória que vos herdámos? Que fazeis do edifício alevantado por nós, e amassado com o nosso sangue?” Esta ligação ao império, este orgulho nesse império, muito anteriores a Salazar, afastam qualquer paralelo com o que os alemães sentem a respeito do nazismo.

Não ignoro, claro, que nesse império houve massacres, espoliações, terríveis injustiças e gritantes situações de violência continuada, como o trabalho forçado ou o tráfico transatlântico de escravos — tráfico esse a que, como já referi, Bethencourt apontou especificamente o dedo. Não obstante, o império colonial não foi o período hitleriano e mesmo no caso do tráfico negreiro há diferenças muito importantes que tornam a equivalência que Francisco Bethencourt promove inaceitável e tóxica. Sublinhe-se de novo, por nunca ser de mais fazê-lo, que o tráfico de escravos levado a cabo por vários povos ocidentais, de comum acordo com chefias africanas, foi uma forma de comércio horrível e desumana, que trouxe enorme sofrimento e, até, a morte, a milhões de pessoas. Mas, ao contrário do que acontecia nos campos nazis, o tráfico não visava o extermínio dessas pessoas; visava, isso sim, transportá-las vivas para o outro lado do Atlântico, onde o seu trabalho podia ser economicamente explorado. O tráfico não era uma forma de execução. Pese embora o seu imenso horror, o navio negreiro não era Treblinka nem Auschwitz-Birkenau — o tráfico não era a “Solução Final” — e é estranho que um historiador sugira, por via das suas ideias sobre política de memória, um paralelo desse tipo (que se encontra com frequência no discurso dos activistas e políticos de extrema-esquerda).

O paralelo é falso, também, porque a execução de pessoas nos campos de extermínio já era percebida como crime na época em que foi levada a cabo. Não seria crime para o regime de Hitler, claro está, que adaptava as regras às suas necessidades e práticas, mas era-o no mundo circundante. Ora, nada disso acontecia com o tráfico transatlântico de escravos, que só foi entendido e classificado como crime — equiparado, em termos jurídicos e penais, à pirataria —, a partir do século XIX. Até então, e na melhor das hipóteses, ele foi visto, não apenas na Europa, mas no resto do mundo, como prática triste, injusta, desaconselhada, mas não proibida ou criminosa. É, portanto, um óbvio erro suscitar a equiparação dessa faceta da presença portuguesa em África nos séculos XV e XVI, por exemplo, com práticas do regime nazi que os seus contemporâneos já reconheciam como criminosas.

Misturar a escravatura com o Holocausto, igualar ambas as coisas através do estratagema de advogar que se siga em Portugal a política de memória que os alemães seguem a respeito do nazismo, é convocar para a avaliação histórica dessa escravatura e doutros aspectos lamentáveis do antigo império colonial português, ideias e sentimentos que associamos à matança industrial de judeus, o que é abusivo e uma distorção da verdade. Na história do império colonial português houve muitas páginas cruéis e sangrentas, houve muitos momentos de abuso que não devem ser ignorados nem menorizados, mas dificilmente se poderá acusar os nossos antepassados de terem seguido, ao longo de séculos, políticas sistemáticas de genocídio. O império colonial português não foi o nazismo, e, num cômputo geral, e apesar dos seus vários momentos sombrios, não foi coisa de que os portugueses tenham de se envergonhar, como os alemães se envergonham da era de Hitler.

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