Quando uma disruptiva, inesperada e imprevista pandemia afecta múltiplos – senão todos – os domínios da nossa existência, o que é pode acontecer em termos da sexualidade e da reprodução humanas?

Sendo ainda cedo para se retirarem dados e, sobretudo, ilações definitivas, há, pois, ainda, muitas perguntas sem resposta, o que não pode impedir que esta temática e algumas das questões suscitadas sejam desde já debatidas em alargado e participado debate de cidadãos, que não deve ser adiado para depois da pandemia.

É certo que o binómio sexualidade – neste caso a heterossexualidade em idade fértil – e reprodução humana podem ser termos autónomas, quase independentes.

Decerto: nem sempre há uma relação de causa efeito entre sexualidade e reprodução; e, mesmo sabendo que a sexualidade não se reduz às relações sexuais convencionais, o certo é que não é por haver mais ou menos, melhores ou piores, relações heterossexuais na idade fértil que o desejo de reprodução e a natalidade aumentam ou diminuem automaticamente.

Muito depende da dinâmica afectiva dos projectos de vida e sua exequibilidade, do acesso e do recurso a contracetivos eficazes e seguros, algo que quase sempre varia, e muito, conforme as regiões em causa e condições económicas e sociais prevalecentes, algo que foi muito afectado na pandemia SARS-CoV-2 pelas restrições (por vezes excessivas e demasiadamente prolongadas) no acesso a cuidados de saúde primários, a consultas de planeamento familiar e até a consultas de interrupção de gravidez, algumas das quais encerraram também no Serviço Nacional de Saúde (SNS) no início da pandemia; e também listas de espera inaceitavelmente crescentes nas consultas de procriação medicamente assistida (PMA) no SNS.

A pandemia enquanto catalisador de assimetrias

De todo o modo, o certo é que esta pandemia se enxertou num país – Portugal – que era já, no início de 2020, o quarto mais envelhecido do mundo (após o Japão, Itália, Grécia).

É sabido que somos um país cuja pirâmide etária estava e está cada vez mais invertida; um país cuja natalidade está em acentuado decréscimo, o qual não foi invertido nem por tímidas medidas, dispersas e pontuais a nível nacional e regional de apoio e incentivo à natalidade, nem por uma tal ou qual imigração nem sempre planeada ou qualificada de africanos, de cidadãos de países de Leste e, ultimamente, de algumas comunidades asiáticas, tantas vezes a residir em condições escandalosamente sub-humanas e insalubres.

De uma forma geral, tanto em Portugal como pelo mundo fora, sabemos que, nestes estranhos dias do mundo, a pandemia, fatalmente, se tem mostrado como um catalisador e revelador de anteriores desigualdades sociais, étnicas, minoritárias e geopolíticas.

Assim, os mais afectados negativamente foram e são aqueles que viviam e vivem em piores condições laborais, domésticas, financeiras, sociais, sanitárias: assim sucedeu a nível de condições de trabalho, acesso a cuidados de saúde (primários e hospitalares), a vacinas, aquisição e recurso a máscaras e testes.

Claro que nuns casos a pandemia foi positiva para a sexualidade de alguns, permitindo a casais e diferentes tipos de famílias reinventarem-se, redescobrirem-se e fortalecerem-se, afectiva e espiritualmente: houve quem se deslocasse para casas de férias ou de fins de semana e por lá ficasse, com uma vida melhor, transformando até a anterior primeira habitação em segunda. Mas esses, foram, fatalmente, e sobretudo, alguns dos mais favorecidos.

Noutros casos, relações que subsistiam num ténue, instável e precário equilíbrio, com escassa presença física e escassa partilha, foram dissolvidas justamente pelo excesso de presença obrigatória, num espaço mais ou menos reduzido. Disporemos certamente em breve de dados sociológicos sobre isto, de resto nem sempre traduzíveis em divórcio, até porque muitas ligações eram e são cada vez mais de união de facto.

E mesmo também em termos de reprodução humana, do número de gravidezes e de partos, será muito interessante conhecer entre nós uma análise sociológica mais fina e detalhada sobre quem adiou ou desistiu de engravidar.

Sabemos que numa fase inicial, digamos entre Março e finais de 2020, houve um global sobressalto nos comportamentos e hábitos contraceptivos e sexuais, que se repercutiu no crescimento na venda de contraceptivos femininos de curta duração – “pílula”, sobretudo, mas também anel vaginal – e maior recurso a plataformas digitais para encontros íntimos.

Em sentido inverso, diminuiu a compra de preservativos e de fármacos para estimulação eréctil (“viagras” e afins), tendo também aumentado o consumo de aparelhos (ditos “brinquedos”) sexuais.

Passado o embate inicial, os cuidados de saúde primários foram reabrindo e as vendas de contraceptivos no final de 2020 situavam-se já em valores análogos aos anteriores à pandemia, assim persistindo em 2021.

Acentuou-se, globalmente, a baixa do número de partos em 2020 (83.700, versus 86.000 em 2019) e 2021, sendo que, neste último ano, não há ainda dados definitivos mas estimativas várias (baseadas no “teste do pézinho”) sugerem valores à volta de 80.000 (o número mais baixo desde 2014, então com 81.500).

É uma quebra brutal.

Curiosamente, a quebra no número de partos foi mais acentuada em certos hospitais do SNS, havendo hospitais privados em que o número de partos até aumentou ligeiramente – é possível que tal tenha sido devido à vontade materna e paterna em ter acesso a melhores condições logísticas e, no caso em que tal fosse possível, com a presença do pai do bebé nas consultas, ecografias, parto e puerpério – algo que foi muito perturbado e mesmo impossível em diversos hospitais  públicos e privados por períodos vários, recorrentes e de duração incerta e diferente.

Dinâmicas familiares vs profissionais

Mas, por entre as múltiplas e interactivas incertezas de um novo dia-a-dia, de um novo “normal”, muita coisa nunca voltará a ser como dantes (veja-se o teletrabalho).

Pensemos nas incertezas profissionais, na respectiva precariedade acentuada de carreira, segurança, salário.

Atentemos nos múltiplos isolamentos e confinamentos de duração variável e por vezes até confundida e mal conhecida.

Vejamos o teletrabalho, na maioria das vezes em condições domésticas inadequadas e apertadas.

Vemos escolas recorrentemente fechadas – às vezes por simples contactos com infectados assintomáticos – e crianças também em teletrabalho doméstico tantas vezes nos mais desfavorecidos, com acesso deficiente ou inexistente à internet.

Tudo isto tem inevitáveis consequências na dinâmica familiar, afectiva, conjugal e extra-conjugal, com a violência doméstica a aumentar, sobretudo entre os mais desfavorecidos, por as potenciais vítimas estarem mais tempo à mercê do potencial agressor e as deslocações estarem limitadas e com acesso reduzido a alojamento alternativo e seguro.

Em tudo isto há um erotismo afectado.

E vemos também o erotismo afectado pelo uso de máscaras no exterior e interior (e até, para alguns, durante relações sexuais), pela insegurança gerada pela iniquidade mundial no recurso a vacinas; por medidas obrigatórias a instituir após contactos com infectados por SARS-CoV-2 assintomáticos e contactos com infectados com Covid 19 (estes sim, sintomáticos e doentes); por comportamentos de distanciamento físico decidido por pessoas mais ou menos honestas e responsáveis após auto-testes positivos a SARS-CoV-2 com fiabilidade nem sempre elevada.

Também na saúde mental aumentaram os quadros depressivos e ansiosos reactivos e o burnout por sofrimento de condições de trabalho prejudiciais ao próprio. E isto afecta, evidente e negativamente, o erotismo, o desejo sexual a frequência e qualidade da sexualidade e o próprio desejo de gravidez, de maternidade

E o dado objectivo e certo é que a natalidade diminui acentuadamente em 2020 e 2021 e que, entre nós, a idade materna aquando do primeiro parto é cada vez mais tardia (30,7 anos em 2020), o que compromete a existência de mais filhos.

Por sobre tudo isto, nem sempre a comunicação em saúde pública foi e tem sido a mais adequada, compreensível, transparente.

Se no início da pandemia se aceitaram e toleraram algumas afirmações resultantes da impreparação, surpresa e até ingenuidade (tratava-se de um “vírus chinês” que não chegaria cá;  as máscaras não se deviam usar porque eram um pano que dava uma “falsa segurança”), não raro, diferentes autoridades sanitárias e/ou comentadores com formação mais ou menos conhecida e comprovada diziam uma coisa e o seu contrário em diferentes canais televisivos, quando não no mesmo em horas diferentes ou em dias próximos.

Mais: as declarações de conflitos de interesse foram raras, senão mesmo pontuais, o que contribuiu por vezes para a erosão de confiança nas autoridades de saúde e, pior, na própria ciência e respectivas provas.

Felizmente, entre nós, a taxa de vacinação é muito alta, se bem que tenham subsistido dúvidas em muitas grávidas e cuidadores de saúde sobre a segurança e consequências da vacinação e infecção por SARS-CoV-2 na gravidez, tanto a nível materno como fetal e no próprio recém-nascido.

Aqui chegados, importa que, como deve ser timbre de uma genuína democracia sanitária, se enfrente a realidade e se implementem sérias, corajosas e eficazes medidas pró-natalistas entre nós e, bem assim, com apoio, a alguma imigração jovem, qualificada, controlada.

E que tal seja debatido amplamente em alargado debate de cidadãos.

E que a quebra acentuada de natalidade (nada sugere que haja quebra na fecundidade feminina e masculina) não seja, ela também, mais uma das consequências e manifestações do chamado long Covid, isto, é, daquilo que persiste negativamente na saúde de quem teve Covid.

Sendo certo que ninguém inventa a roda – veja-se, por exemplo, a eficácia de generosas medidas pró-natalistas concertadas e globais em França e na Suécia, com apoios financeiros expressivos aos segundo e terceiro filhos, com tentativa de antecipação da idade materna aquando do primeiro filho, acesso facilitado a creches, isenções ficais, apoio laboral, licenças de paternidade maiores, partilháveis e obrigatórias, facilidade no acesso a alojamento e residência condigna e adequada – haverá, seguramente, medidas específicas a implementar a nível nacional e regional.

Mas façamo-lo com urgência e competência. Nenhum outro desígnio é hoje tão inadiável.

Tal deveria ter sido, de resto, senão mesmo o tema principal, um dos mais importantes na campanha eleitoral em curso em Janeiro de 2022, porque as consequências de um progressivo decréscimo da natalidade nos próximos anos serão inexoráveis também em termos da própria segurança social e sustentabilidade e coesão estrutural nacional: se não há jovens a descontar para a segurança social, como pagar as reformas, que futuro tem uma sociedade cada vez mais envelhecida, com cada vez mais idosos e respectivas doenças?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.