Os anos de 2022 e 2023 estão marcados em termos macroeconómicos pelo espoletar, a nível global, de um surto inflacionista – que praticamente chegou a atingir os dois dígitos em termos da respectiva taxa de crescimento –, facto que já não ocorria há mais ou menos 30 anos.

A causa mais próxima aconteceu a propósito do desencadear da invasão da Rússia à Ucrânia, com a consequente influência no preço de certos bens básicos, designadamente a energia (de que a Europa sempre foi altamente dependente da Rússia) – e doutros que afectaram a cadeia alimentar, designadamente nos cereais e fertilizantes. Mas como em todos os surtos inflaccionistas consistentes assistiu-se a uma contaminação rápida, atingindo uma muito maior amplitude de produtos e serviços, situação esta também induzida por disfunções nas cadeias de abastecimento e de distribuição.

Sem dúvida alguma que a guerra na Ucrânia se traduziu num relevante choque externo adverso, mas cabe também relembrar que o início da formação da onda inflacionista já vinha de trás, designadamente quando face a outro choque externo abrupto – a pandemia – se assistiu a uma quase paragem da atividade económica em geral, acompanhada consequentemente por fortes quedas do PIB em diversas economias.

E foi neste contexto de pandemia que muitos governos (e seus bancos centrais) implementaram medidas pontuais de apoio adicional à liquidez (que não deixaram de ter os seus efeitos inflacionistas) no sentido de estancar a tendência depressiva  inerente a este choque global, e numa visão  mais estratégica de médio prazo a União Europeia (UE) criou as condições para que as diversas economias  estruturassem  programas de recuperação e de modernização das economias , denominados PRR que se traduzem em abundantes apoios financeiros como nunca visto (a chamada bazuca europeia).

No quadro destes macro-choques da oferta – em particular o segundo – diz a teoria macroeconómica que quando se verifica uma queda abrupta e imprevisível da oferta agregada, a manter-se estável o nível da procura agregada, há que tomar medidas  para repor o equilíbrio (novo ponto de encontro entre as curvas da oferta e da procura agregadas). E, para tal há, que arrefecer o nível da procura mediante políticas bem orientadas, em especial através de aumentos das taxas reguladoras dos bancos centrais (no nosso caso, o Banco Central Europeu) que, rapidamente, se transmitem  às taxas de juro das operações correntes no mercado, assim contraindo a procura agregada.

No entanto estas medidas-chave visando o combate à inflação podem não ser de efeito imediato, razão por que se vive atualmente um contexto de preços ainda altos, não acompanhados por equivalentes aumentos salariais, o que gera degradação do poder de compra e das condições de vida, em especial das classes mais desfavorecidas (cujo peso em Portugal é ainda deveras relevante).

À generalidade dos governos – e claro, o português – não restou, no entretanto, outra alternativa senão a distribuição pontual de rendimentos – apoios financeiros – pelos agentes económicos, sendo certo que as autoridades políticas e monetárias no seio da UE sempre consideraram que estes tipos de apoios deviam ser claramente temporários e focados nos mais carenciados, porque, pura e simplesmente, eles não deixam de ser de  per si (sobretudo  quando mais transversais e generalizados) motores de pressão inflaccionista, cujo combate no terreno se centra na contenção da procura via subidas das taxas de juro.

Parece estarmos assim perante uma “aparente” insensibilidade social por parte de governos (incluindo claro o português), mas a gestão deste trade off, “combate à inflação e sua mitigação pontual”, exige também – em função dos défices orçamentais e do seu peso na dívidas públicas – uma delicadeza não irrelevante. Vejamos, a propósito, as constantes advertências feitas pelo Governador do Banco de Portugal, referindo isso mesmo, ou seja, que os apoios financeiros extra dados à economia devem ser temporários e focados quase exclusivamente nos verdadeiramente carenciados.

Ficamos assim, digamos, como “um tolo no meio da ponte”, certos que a dominância das políticas monetárias restritivas continuará a prevalecer com a consistência tida como necessária, em ordem a acelerar o fim do surto inflaccionista, sendo, no entanto, acolhidos naturalmente como importantes os apoios de mitigação, mas apenas “quanto baste”.

Nesta linha de raciocínio, considero pertinente interrogar-me sobre se o atraso largamente divulgado na execução do nosso PRR se deve exclusivamente à burocracia e má gestão do Estado/Governo, e mesmo à impreparação de muitas empresas em termos de cumprimento dos requisitos de acesso aos fundos. É que, neste particular, à partida a tolerância da UE não deveria ser muita, mas uma vez que investimentos maciços no âmbito do PRR (necessariamente com outputs a médio prazo) geram nas economias fluxos de liquidez susceptíveis de “reacenderem” focos inflaccionistas de relevo, a avaliação da situação poderá (?) eventualmente ser diversa. Temporariamente, diga-se.

Não esquecer, no entanto, que atrasos na execução do PRR podem – na nossa conjuntura interna – acarretar consequências políticas gravosas! Até porque o PRR constitui, a médio prazo, o mais poderoso instrumento disponível para reestruturação e modernização da economia portuguesa (via importantes investimentos a diversos níveis), sob pena de acentuarmos o nosso empobrecimento relativo.

E a minha interrogação, que carece de esclarecimento, é a de saber se o já divulgado atraso na execução do PRR resulta na sua essência da tal burocracia e ineficácia do Estado (e, como atrás referi também de agentes empresariais) ou se não haverá aqui também uma “deliberada” intenção de travar a execução para evitar, a curto prazo, inevitáveis pressões inflaccionistas geradas pela liquidez injectada, a propósito de um volume muito significativo de investimentos estruturantes com efeitos a médio prazo. Perguntar não ofende!

Em suma, seria importante que, de uma forma transparente, tivéssemos uma certeza quanto a esta interrogação. Politicamente, neste momento, tal não seria irrelevante, relembrando que o PRR tem a data-limite para a sua execução até 2026.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.