Foi pelas mãos do conde Mauricio de Nassau, militar enviado pelo governo holandês para colonizar o estado de Pernambuco, em 1637, que o Brasil viu surgir sua primeira cervejaria, também pioneira nas Américas. O mestre cervejeiro Dirck Dicx, que veio com a embarcação, foi o responsável pela instalação da pequena fábrica na residência chamada La Fontaine, no Recife. O início da produção de uma cerveja encorpada com cevada e açúcar foi em 1640 e há relatos de que tenha durado por volta de 15 anos. Aí, a história da Holanda com a cerveja no Brasil dá uma pausa. Trezentos e cinquenta e cinco anos depois, o País voltou a ser rota dos holandeses. A Heineken desembarcou por aqui em 2010. Desde então, a companhia com sede em Amsterdam vem encorpando sua presença. Desde 2018, o Brasil é a maior operação da Heineken, que atua em 180 países. De quebra, tem sido uma pedra no sapato da gigante Ambev, a líder do setor, com 59% de participação, segundo relatório da Empiricus. Em 2017, a fatia da Ambev era de 70% do mercado de cerveja no Brasil. Com 23%, a Heineken incomoda a principal concorrente no segmento que mais tem crescido nos últimos anos, o premium. A fórmula “água, malte, lúpulo e nada mais”, mote da marca, caiu no gosto do brasileiro. Hoje, de cada dez cervejas desta categoria consumidas no Brasil, seis são Heineken, a garrafa verde com a estrela vermelha no centro.

Há 11 anos, a Heineken chegou ocupando 8% do mercado. Com a aquisição da Brasil Kirin, em 2017, por R$ 2,2 bilhões, a companhia pulou para 15% e hoje está próximo de atingir um quarto nas vendas, cenário nunca antes alcançado por uma companhia de cerveja no Brasil desde que Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira criaram uma fortaleza ao fundir Brahma e Antarctica, em 1999. Para subir ainda mais de patamar, a Heineken quer mostrar suas diferenças em relação à rival. Hoje, o foco da companhia é se apresentar ao consumidor com um olhar mais voltado à sustentabilidade do negócio, com adoção de metas ambientais, e ao consumo responsável. O plano passa pelo compromisso de ser carbono neutro em toda a cadeia de valor até 2040. Nas fábricas, o objetivo é de alcançar 100% de energia renovável até 2023.

RESPEITO Se isso pesa na escolha da marca de cerveja, aumentar o market share é consequência e não o objetivo inicial. “A gente não quer necessariamente ser a maior cervejaria do País e sim a melhor”, disse à DINHEIRO Maurício Giamellaro, CEO da Heineken no Brasil. “A gente faz isso com respeito e qualidade, e não quantidade, o que nos diferencia de nosso competidor.”

É bem verdade que a pandemia de Covid-19, com a obrigatoriedade do isolamento social, contribuiu para o aumento do consumo da bebida, principalmente dentro de casa. Dados da Euromonitor International mostram que o ano de 2020 registrou índice recorde no volume de vendas. No ano passado, os brasileiros beberam 13,3 bilhões de litros. A marca só foi inferior a 2014, ano da Copa do Mundo no Brasil, com 13,8 bilhões de litros. A produção também cresceu. Segundo a série histórica da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (Cervbrasil), as cervejarias produziram 14,2 bilhões de litros em 2020 — um recorde histórico.

Para acompanhar a demanda e crescer ainda mais no Brasil, a Heineken investe no aumento da capacidade de produção. Entre 2019 e 2023, serão aportados R$ 2,6 bilhões, mais do que gastou, há quatro anos, para comprar a operação brasileira da Kirin. O maior montante, R$ 1,8 bilhão, será para a construção da 16ª unidade produtiva da empresa no País, em Pedro Leopoldo (MG) e que será uma das três maiores fábricas da Heineken no mundo. Na unidade de Minas Gerais serão produzidas cervejas da Heineken e do segmento mainstream. “Vai ser a maior cervejaria do grupo no Brasil e uma unidade muito tecnológica, voltada a questões ambientais”, afirmou Giamellaro. As obras tiveram início em agosto e a expectativa é que a linha de produção esteja pronta em dois anos.

CAPACIDADE DE PRODUÇÃO Para a ampliação da fábrica de Ponta Grossa (PR), os investimentos chegam a R$ 865 milhões. A unidade de Pedro Leopoldo, ao custo de R$ 1,8 bilhão, será a terceira maior do mundo. (Crédito:Divulgação)

Na ampliação da fábrica de Ponta Grossa (PR), os investimentos chegam a R$ 865 milhões. A partir dessa extensão, a unidade se tornará a terceira maior operação da Heineken no Brasil (atrás de Itu e Jacareí, as duas em São Paulo). Também é na fábrica paranaense que a companhia produz a Heineken 0,0, sem álcool, lançada em dezembro de 2019. O aporte também garantiu a geração de 600 empregos diretos e indiretos. Hoje a companhia tem 13 mil trabalhadores no Brasil. Com as ampliações, deve chegar, ao fim de 2023, a um crescimento de 50% no volume de produção de todo o portfólio da companhia. Somente do rótulo Heineken, o crescimento deve alcançar 75%. A companhia não revela os atuais volumes produzidos nas fábricas brasileiras.

Para entender o plano estratégico da empresa, de crescer de forma sustentável, é preciso saber também como está dividido o mercado de cerveja no Brasil. São quatro segmentos: mainstream (onde estão Amstel e Devassa); craft (com as marcas Lagunitas e Baden Baden); premium (onde figuram a própria marca Heineken, Sol e Eisenbahn); e economy (segmento de Kaiser, Schin e Glacial). Desses quatro, a Heineken lidera em três: premium, com share de 46% (e liderança folgada do rótulo verde); economy, com 45%; e craft (neste segmento, a holandesa não revela sua participação). A Ambev é superior no mainstream, que responde por quase 60% do mercado, e no qual a Heineken soma 33%.

E justamente para tentar ganhar mercado no mainstream é que ela trouxe em agosto para o Brasil a marca Tiger, de Cingapura, um dos principais rótulos da companhia no mercado asiático. “Ela vai trazer mais qualidade para o segmento puro malte mainstream. A gente começou a distribuição no Sul e hoje já é nacional”, disse o CEO. Ainda não está definido quando começa a produção no Brasil. Outro rótulo que a Heineken traz é a Blue Moon, esta no segmento craft, uma cerveja que tem grande projeção no setor nos Estados Unidos. A cerveja especial hoje está em São Paulo e no Rio de Janeiro e deve ser expandida durante o ano. A produção será em Itu.

A presença maior em pontos de vendas como supermercados do que em bares foi, na avaliação do CEO da companhia, uma de tantas razões que explicam o crescimento na participação de mercado. Com a reabertura gradual, ainda que pelo menos 35% tenham fechado as portas definitivamente, o plano é garantir maior capilaridade nas mesas de bares. Hoje com atuação em 850 mil pontos de venda, a meta é alcançar 1 milhão de estabelecimentos no Brasil. “A companhia quer garantir que o cliente possa ter opção nos bares. A meta é que a gente continue crescendo duplo dígito no faturamento nos próximos cinco anos.”

A Heineken não revela a receita por país, mas, no cenário global, a companhia faturou 9,9 bilhões de euros no primeiro semestre (alta de 14,1% em relação ao mesmo período do ano passado), com lucro operacional de 1,63 bilhão de euros (crescimento de 109%).

Para Paulo Solmucci Júnior, presidente-executivo da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), a volta dos bares vai ajudar no aumento da rentabilidade das companhias de cerveja. “A retomada do mercado de bares é uma dádiva, já que a margem é maior do que em mercados. Em julho, já alcançamos 80% do que foi observado em 2019”, disse o dirigente. Estudo da KPMG mostra que 60% do faturamento de bebidas vêm de bares e restaurantes.

E para ampliar a presença, a Heineken aumentou de 29 para 31 centros de distribuição no País (em Poços de Caldas e Rio de Janeiro). Também anunciou um novo desenho na distribuição feito pelo sistema Coca-Cola, que agora não irá mais distribuir a Heineken, que ficará a cargo da empresa, mas assumirá outras marcas, como Eisenbahn e Tiger, além de Kaiser, Bavaria e Sol. Na prática, serão dois modelos de distribuição, justamente para ampliar a presença no País. “É tudo Heineken, só que distribuído de maneira independente. O que a companhia ganha com isso é foco”, disse Giamellaro.

NOVO PORTFÓLIO A Heineken traz a Tiger, uma das principais marcas do mercado asiático, para competir no segmento mainstream, em que a Ambev é líder. (Crédito:Joao Sal)

Nesse processo de expansão, há importantes desafios. Talvez o mais significativo deles seja em relação a insumos, como vidros e latas, e embalagens. No ano passado, a Heineken e outras companhias se viram obrigadas a reduzir a distribuição. Mas, segundo a Heineken, o impacto não foi grande e durou pouco tempo.

Para a presidente da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), Cristiane Foja, o mercado tem observado crescimento nas vendas nos últimos meses. “A perspectiva é positiva para o setor”, afirmou. “A gente acredita no aumento gradativo do convívio fora de casa. A recuperação no volume de vendas foi bem significativa.”

Com tudo isso, o momento é de aposta no mercado brasileiro. Para o superintendente do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), Luiz Nicolaewsky, a pandemia ainda irá direcionar decisões, com olhar para o futuro. “As empresas estão olhando para frente com otimismo e incorporando inovações e novas opções para atender amplamente os clientes em suas preferências no consumo”, afirmou. E, pela fórmula da Heineken, a cerveja premium da garrafa verde só dará dor de cabeça aos concorrentes.

ENTREVISTA: Maurício Giamellaro, CEO da Heineken no Brasil
“A gente não acredita que vai chegar no coração das pessoas se não fizer diferente pelo planeta”

Claudio Gatti

Qual o diferencial da Heineken em relação à concorrência?
Nossa estratégia é baseada no que a gente acredita e não no que nossos concorrentes podem ou não fazer. Por isso que nossa estratégia não é ser o maior e sim ser o melhor. Nossa grande diferença está no respeito, em crescer junto com nossos fornecedores e clientes. Quando o consumidor enxerga que o produto é produzido pela Heineken, pode até escolher outra marca, mas sabe que ali tem qualidade. Isso tem um valor muito grande.

Qual tem sido o foco atual da companhia?
Começamos no Brasil, há 11 anos, basicamente explorando a parte de qualidade da cerveja brasileira, através da construção do puro malte. A gente foi a primeira empresa no mercado brasileiro de cerveja a falar da qualidade do líquido. Hoje a gente está feliz com nossa estratégia, que tem sido liderar o premium, e a gente tem mais do que o dobro do segundo colocado, acabamos de assumir no mercado craft e já temos a liderança do economy e do mainstream puro malte. A gente agora está trabalhando a massificação do mainstream, que é hoje a única fortaleza do nosso competidor. Enquanto nosso concorrente tem um jeito de gerar lucros, a gente quer gerar lucros com uma sustentabilidade maior e com respeito. Qualidade, respeito e paixão foram fatores que nos fizeram crescer em participação e no reconhecimento dos clientes.

Com 23% de market share, qual é o horizonte da Heineken em termos de participação?
Nosso horizonte não é o objetivo de market share. Nosso objetivo é melhorar a qualidade de nossas operações. Queremos estar em todos os pontos de venda no mercado brasileiro. Hoje a gente vende para mais de 850 mil pontos de venda e a gente quer vender para mais de 1 milhão. E fazer isso com qualidade. Participa-ção de mercado é consequência.

Qual a importância do tema sustentabilidade na empresa?
A gente não acredita que vai chegar no coração das pessoas se não fizer diferente pelo planeta. Estamos fazendo muita na área social e no consumo responsável. Prefiro vender nove unidades de Heineken para nove pessoas do que nove unidades a uma pessoa. A gente tem objetivo que o consumidor beba com consciência. Isso é o que move nossa estratégia.