A Ford surpreendeu os brasileiros ao anunciar, em janeiro, o encerramento das suas linhas de produção no País. A decisão resultou no fechamento de parques fabris e na demissão de cerca de 5 mil funcionários. Sob as diretrizes do CEO e presidente mundial Jim Farley, a matriz nos Estados Unidos passou a apostar em veículos de maior valor agregado — todos importados — para aumentar a rentabilidade. Saíram de cena modelos de entrada que geram pequena margem de lucro, como o Ka, então vendido por R$ 50 mil. Entraram automóveis premium, como o SUV Bronco Sport, sucesso nos Estados Unidos e com preço inicial de R$ 272.650. A “gourmetização” da marca se mostrou acertada. No terceiro trimestre deste ano, a Ford voltou a registrar lucro na América do Sul, o que não acontecia havia oito anos.

O fechamento das plantas no Brasil foi parte de uma estratégia para manter a montadora rentável globalmente. Desde a crise econômica de 2013, a operação da Ford na América do Sul acumulava perdas significativas, sendo socorrida economicamente pela matriz. Segundo Farley, a desvalorização das moedas locais (real e peso argentino, principalmente) “aumentou os custos industriais além de níveis recuperáveis”. A Ford comercializou apenas 33.112 automóveis e utilitários no Brasil entre janeiro e setembro, contra 107.922 no mesmo intervalo de 2020. Caiu da quinta posição no ranking de vendas nacional (7,1% de market share), para a décima, com apenas 2% do mercado. Ainda assim, entre julho e setembro, a receita da montadora na América do Sul somou US$ 600 milhões — o que encorajou a matriz a fazer novos investimentos, não na produção brasileira, mas no aumento da oferta de modelos por aqui. Para 2022, está previsto o lançamento da picape Maverick, com preço estimado entre R$ 210 mil e R$ 230 mil.

Tobias Schwarz

“Não iremos nos transformar em uma marca de nicho no segmento automotivo, mas vamos focar em produtos de mais alto nível” Luca de Meo, CEO da Renault.

CHIPS A montadora não está sozinha na busca de clientes dispostos a pagar mais por seus carros. A demanda por veículos de patamar superior aumentou no último ano. As vendas de modelos luxuosos como Volvo XC60 (que pode chegar a R$ 400 mil) e BMW 320i (a partir de R$ 280 mil) aumentaram acima de 30% no Brasil este ano em relação a 2020. Enquanto isso, poucos carros de entrada tiveram o mesmo salto, com líderes do segmento avançando apenas na casa de um dígito (gráfico à página 39). Uma das razões para as vendas terem evoluído pouco é a escassez de semicondutores, cuja produção foi afetada pela pandemia. O problema atinge a cadeia global, com previsão de normalização apenas em 2023. Somente neste ano deixarão de ser fabricados pelo mundo 7,7 milhões de unidades.

Por causa da falta de chips, a francesa Renault estima perder 500 mil vendas mundialmente em 2021. A companhia registrou queda de 22,3% nos negócios no terceiro trimestre, com a comercialização de 599 mil unidades. No Brasil, foram 26,5 mil, redução de 15% em relação ao mesmo intervalo de 2020. A retração nas vendas está diretamente ligada à falta de componentes. O faturamento mundial diminuiu 13,4% ­— e só não caiu mais por causa da aposta em produtos de maior rentabilidade no mercado internacional. A estratégia será adotada também no Brasil, como revelou Luca de Meo, CEO global, em visita à fábrica da montadora em São José dos Pinhais (PR). “Não iremos nos transformar em uma marca de nicho, mas vamos focar em produtos de mais alto nível”, afirmou o italiano. A estratégia é apontada como saída para a crise iniciada com a pandemia, que resultou em queda nas vendas e prejuízos no País. “Tomamos decisões muito duras, mas já vemos uma luz no fim do túnel”, disse o dirigente, referindo-se ao plano de demissão voluntária que desligou 500 colaboradores. Um novo plano de investimento deve começar a ser aplicado em 2023, quando o atual, de R$ 1,1 bilhão, for completado. A nova estratégia vai integrar diferentes mercados por meio de produtos globais. Existe a possibilidade de o SUV Bigster, lançado pela coligada Dacia, ser produzido no País a partir de 2024.

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“O Brasil é de longe o mercado com o maior potencial da América Latina, pois tem uma economia diversificada, uma população jovem e aberta às novas tecnologias” alexander wehr CEO do BMW Group para América Latina.

Ao priorizar SUVs, que se tornaram os queridinhos dos brasileiros, a Renault irá aposentar os modelos Sandero e Logan até o fim de 2023. A nova geração dos dois carros já circula pela Europa, mas não será fabricada no Brasil. As mudanças no portfólio de produtos devem incluir a reestilização do Renault Kwid, que seguirá como versão de entrada da bandeira, além de ganhar uma versão elétrica, chamada de Kwid E-Tech (na Europa, Dacia Spring). De acordo com o CEO, possivelmente o carro mais em conta do segmento, posto ocupado pelo JAC e-JS1, que custa R$ 150 mil. A reformulação da picape Renault Oroch também está prevista para ocorrer no ano que vem.

A crise dos semicondutores também levou a GM no Brasil a apostar, mesmo que por poucos meses, em veículos de maior rentabilidade. No início deste ano, a companhia suspendeu a produção do Onix, líder de vendas desde 2015 e com preço inicial de R$ 63 mil à época, para priorizar a fabricação do SUV Tracker, que custava R$ 96 mil — atualmente, os modelos partem de R$ 72 mil e R$ 110 mil, respectivamente. Com a retomada do abastecimento de chips, a fabricação do hatch recomeçou já no segundo semestre, em Gravataí (RS).

LUXO A aposta no segmento premium ganha evidência com o reinício da produção do Range Rover Evoque no Brasil, na planta do grupo Jaguar Land Rover em Itatiaia (RJ), de onde já sai o Discovery Sport. O Evoque chegou a ser produzido ali entre 2016 e 2019, mas, por questões estratégicas, passou a ser importado. O novo modelo tem duas versões: SE, por R$ 377,9 mil, e R-Dynamic HSE, por R$ 407,9 mil. As duas estarão disponíveis em dezembro. Na visão de Frédéric Drouin, presidente da Jaguar Land Rover América Latina e Caribe, o Evoque ofertará o mesmo grau de tecnologia e luxo apresentado pela família Range Rover no mercado mundial. “O Evoque traduz a essência da marca Land Rover, entregando uma visão de luxo moderno através do design, da qualidade e da eficiência”, disse.

A fabricante britânica que hoje pertence a um grupo indiano afirma deter 27% de market share do segmento premium no Brasil — pouco atrás da alemã BMW, com 30% de participação (mais que a soma das conterrâneas Audi e Mercedes-Benz ). Com 26 anos no mercado brasileiro, a atual líder do luxo anunciou um aporte de R$ 500 milhões para produzir novos modelos na planta de Araquari (SC). O investimento será feito ao longo dos próximos três anos e se soma ao R$ 1,2 bilhão já investidos na operação de manufatura brasileira desde 2014. O recurso adicional permitirá à marca fabricar aqui todas as versões a combustão dos novos SUVs X3 e X4 para o mercado nacional. Segundo o presidente e CEO do BMW Group para a América Latina, Alexander Wehr, o anúncio reforça o compromisso da marca com os clientes e com o desenvolvimento de novas tecnologias para o País. “O Brasil é de longe o mercado com o maior potencial da América Latina, pois tem uma economia diversificada, uma população jovem e aberta às novas tecnologias”, afirmou.

A unidade fabril catarinense é a maior da América do Sul dedicada a automóveis premium. Segundo a BMW, a produção de novos modelos, incluindo um inédito e ainda não revelado pela matriz, virá acompanhada de melhorias na operação. A equipe de engenharia local será envolvida no desenvolvimento dos softwares de digitalização. As atualizações também produzir o veículo mais potente de fabricação nacional, com motor de 387 cavalos.

A julgar pelos recentes anúncios das montadoras, não faltarão veículos premium para quem estiver disposto a pagar por eles. Algo paradoxal em uma economia que não acelera — e se mostra incapaz de frear a inflação, o dólar e os juros.