Juliana Azevedo entrou na P&G Brasil em 1996, aos 21 anos, como estagiária na área de marketing . Tinha um plano na cabeça. Obter o máximo de aprendizado em dois anos. Em seguida, enfrentar o mercado, consolidar uma carreira e liderar uma organização. Pelos seus acertos, o planejamento deu errado. Melhor para ela e para a companhia americana de bens de consumo de saúde, beleza e higiene. Foi promovida a assistente, virou gerente, diretora no Brasil e na América Latina, gerente global de franquia da marca e, em fevereiro de 2018, assumiu a presidência da empresa no País. Hoje comanda os 4 mil funcionários distribuídos em três fábricas, um escritório central em São Paulo e um Centro de Inovação na cidade de Louveira, no interior paulista. Mais que isso, define os rumos da operação para venda de 1.378 SKUs (Stock Keeping Unit, sigla para cada unidade de produto) ativos no Brasil, espalhadas em mais de 20 marcas. Entre as mais conhecidas estão Ariel, Gillette, Pantene, Oral-B e Pampers. “Nos últimos cinco anos investimos R$ 2 bilhões para melhorar nossa tecnologia de manufatura, desenvolver nosso Centro de Inovação e, de fato, termos condições de crescer”, disse a executiva de 46 anos à DINHEIRO. Os próximos passos são avanços nas áreas de medicamentos e serviços. “O projeto para o Brasil é constante e de longo prazo”, afirmou.

Paulistana do Jardim Europa, um dos bairros mais nobres da cidade, Juliana é filha única de pais que são primos de primeiro grau. Com forte tecido familiar, sempre teve como referências sua bisavó, que saiu de Portugal para empreender no Brasil (foi comerciante e investiu em imóveis), sua avó e sua mãe, que deram continuidade aos negócios da família e fomentaram o esporte e as artes, suas paixões, além de se dedicar ao trabalho filantrópico. Estudou em boas escolas particulares, o que lhe deu uma base educacional sólida. Amadureceu rápido e logo aos 13 anos começou a trabalhar, dando aulas de inglês e fazendo traduções. Ingressou no curso de Engenharia Industrial da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), que conciliou, por um período, com a faculade de Direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica). Seu primeiro emprego formal foi em uma imobiliária, onde fazia de tudo. Desde servir cafezinho, até auxiliar a área financeira, acompanhar plantões de vendas e treinamento de corretores. Ali descobriu o mundo das vendas e do marketing. “Comecei a perceber que existiam aspectos de liderança que nem mesmo com duas faculdades eu estava aprendendo.”

Começou a procurar estágio em grandes empresas. Uma amiga, que também estudava na Poli e estava na P&G, lhe apresentou os princípios, os valores e a cultura da companhia. Deu match. A empresa havia chegado ao Brasil oito anos antes — hoje são 33 anos no País, de seus 184 anos de história. Juliana Azevedo e P&G cresceram juntas. O portfólio era pequeno. Contrastava com os grandes sonhos da nova colaboradora, que colocava em prática o que havia aprendido com a família. “Meus pais sempre me encorajaram a ser o que eu quisesse, desde que eu me dedicasse.” Com essa filosofia, tirou projetos do papel e enfrentou as dificuldades. Uma delas quando a P&G comprou, em 2003, a alemã Wella, de tinturas, xampus e condicionadores. Então gerente de marca de cuidados femininos no Brasil e na América Latina, a executiva assumiu o time em São Paulo com 13 pessoas. A mudança de cultura de uma empresa alemã para uma americana e o fato de todos os colaboradores mudarem do Rio de Janeiro para a capital paulista resultaram em 12 pedidos de demissão. “Foi muito impactante. Com muito diálogo, revertemos. Os meses seguintes foram desafiadores”, disse Juliana.

SENHORA CRISE Outro episódio marcante na trajetória dela foi quando assumiu a presidência da P&G no Brasil. Morava nos Estados Unidos e semanas depois de chegar aqui deparou-se com a greve dos caminhoneiros. Durante dez dias de maio daquele ano (de 21 a 30), os manifestantes bloquearam rodovias em 17 estados para exigir redução nos preços do diesel. A distribuição de água e alimentos foi afetada. As fábicas da P&G fecharam. Juliana enviava dois reports por dia à matriz americana. Recebeu uma ligação do CEO global David Taylor, preocupado com a situação. Era só mais uma das anormalidades brasileiras. “Brinco que eu, meus vice-presidentes e diretores podemos mudar de posição, mas [nas reuniões da operação brasileira] tem uma cadeira que estará sempre ali: a da senhora crise.”

E desde março de 2019, com a pandemia de Covid-19, Juliana Azevedo tem enfrentado mais um desses períodos de turbulência. Desta vez mais longo e avassalador do ponto de vista sanitário. Que tem feito na executiva resgatar os ensinamentos dos pais e avançar em questões sociais e de filantropia. Entre as principais ações, transporte de cilindros de oxigênio para Manaus e doação de R$ 60 milhões em produtos para famílias afetadas. “Tive de me reinventar e tomar decisões difíceis. Olhando para trás, tenho orgulho do que fizemos.”

No campo de enfrentamento à crise econômica, Juliana não perdeu o foco do objetivo principal desde que assumiu como CEO: colocar a P&G Brasil entre as três principais operações da companhia no mundo. Hoje está entre as 10 maiores, apesar de o País ser o terceiro maior mercado em seu setor de atuação. O consumo tem ajudado. De acordo com dados do Euromonitor, a venda de produtos de higiene e beleza cresceu 4,7% em 2020 e a projeção é de aumento de 4,6% para este ano, com movimentação de R$ 128 bilhões. O crescimento do e-commerce no ano passado foi de 84,5%. “Dobrou a venda dos nossos produtos por canais digitais”, disse. Para Tania Zahar Mine, diretora da Trade Design e professora de pós-graduação na ESPM e na FIA, “as pessoas estão muito cuidadosas com a higiene pessoal, especialmente a limpeza das mãos e a proteção contra o vírus”.

P&D da P&G Inaugurado em 2019, o Centro de Inovações da empresa, em Louveira (SP), é um dos 13 da companhia espalhados pelo mundo. Ali são desenvolvidos novos produtos. (Crédito:Gilberto Marques)

O auxílio emergencial contribuiu para manter, em parte, o poder de compra da população. O que não evitou de a empresa passar por variáveis, ainda que mantendo o crescimento. A CEO discorreu sobre a estratégia. “Nossa atuação foi ter um portfólio vertical e garantir o abastecimento, para não deixar o consumidor desamparado”, afirmou a executiva, que colocou no mercado diferentes formatos do mesmo produto —­ tamanhos e preços. Uma escova de dentes da marca varia entre R$ 5 e R$ 500 (elétrica).

RECEITA Segundo dados da consultoria Statista, a P&G Brasil faturou cerca de R$ 5 bilhões em 2018, ano em que Juliana Azevedo assumiu o comando. Sem comentar sobre valores locais, a executiva afirma que nesses quase quatro anos de trabalho a companhia cresceu 50% no País. “Temos de crescer todo trimestre. E assim tem sido.” Globalmente, o grupo registrou receita de US$ 76,1 bilhões em 2021, ano fiscal encerrado em junho. A Unilever, uma de suas principais concorrentes, registrou faturamento de 50,72 bilhões de euros em 2020, encerrado em dezembro.

Para superar a imprevisibilidade causada pela situação econômica e pelos desarranjos políticos, a P&G Brasil tem usado como receita a governança forte. “O Brasil tem potencial grande. O desafio de quem está liderando é concretizar esse potencial. Tem de transformar o custo Brasil em vantagem competitiva, por mais paradoxal que isso possa parecer.”

Um aliado importante nesse enfrentamento é o Centro de Inovação da P&G inaugurado em 2019, um dos 13 da companhia no mundo, o único com toda a cadeia de desenvolvimento de produtos, planta industrial, centro de inovação e de distribuição no mesmo local. É dali que saem novos produtos, como os recém-lançados Vick Vapospray (solução salina de jato contínuo), Vick VapoBanho (pastilhas com vapores relaxantes e aroma de Vick Vaporub), Secret (marca de desodorante destinada exclusivamente às mulheres) e Always Discreet (linha de absorvente para incontinência urinária).

Além dos produtos de higiene e beleza, a P&G Brasil vai avançar agora para a área de medicamentos. A companhia adquiriu a área de consumo da alemã Merck por US$ 3,9 bilhões. O negócio foi concluído em dezembro de 2018 e em 2019 estava sendo traçado o plano de atuação. Mas a pandemia fez a empresa segurar as ações, que agora serão retomadas. “Devemos investir bastante no Brasil. Temos uma estrutura bem grande de vendas”, afirmou a CEO.

A operação local também vai avançar em prestação de serviços. Está em teste a entrega direta de produtos na casa dos consumidores, que demanda uma logística mais complexa, por meio de parceiro. Também em experimento, parceria firmada com a startup de lavanderia Washout conecta pessoas que lavam roupa com as que precisam desse serviço por um app. Há descontos em produtos. Também foi criada uma plataforma para realização de chás de bebê virtuais. Esse tipo de iniciativa gera valor agregado à marca. “Podemos ser mais para o consumidor do que só uma pasta de dente, um absorvente, um amaciante, um desodorante. É uma fronteira importante do produto para uma experiência e um serviço. Estamos nessa jornada”, disse Juliana, que em sua trajetória na P&G já morou na Venezuela, no Panamá e nos Estados Unidos, e voltou a viver no bairro onde nasceu, no Jardim Europa, em São Paulo. Nas voltas que o mundo dá, a P&G, que preza pelos cuidados pessoais, tem sido bem cuidada pela estagiária que se transformou em CEO.

ENTREVISTA: “O consumidor está mais consciente, preocupado com sustentabilidade”

Claudio Gatti

Quem é Juliana?
Uma brasileira com muito orgulho, apaixonada e determinada. Muito humilde, feliz, com um time maravilhoso, com um projeto lindo. Mãe, casada, filha única, que teve referências femininas maravilhosas na família. Engenheira e advogada. Estudante constante.

O que a pandemia deixa de aprendizado para a empresa e para você?
Saímos mais fortalecidos. Somos empresa de bens essenciais. Nós crescemos em todos os trimestres no Brasil e no mundo. Algumas de nossas escolhas estratégicas anteriores se provaram valiosas. Talvez a mais importante, de que queríamos ser uma força para o crescimento e para o bem. Já tínhamos ecossistema e cultura para atuar nos pilares de cidadania e quando vem a pandemia isso se fortalece. Permitiu atuarmos de forma mais impactante, seja dento da empresa, junto a fornecedores, clientes e colaboradores. Como líder, dois sentimentos fortes: gratidão, pois tenho muita consciência da posição privilegiada que pude passar toda essa turbulência, e responsabilidade.

Essa crise sanitária, de certa forma, humanizou mais os CEOs?
Sim. A liderança é uma posição mais solitária e acabamos nos encontrando como líderes. Não falamos mais de resultados, inovações, participação em conselhos. Conversamos para falar dos desafios de hoje e para se solidarizar. Criamos uma rede para troca de informações e para busca de soluções. A sociedade civil no Brasil se organizou de uma forma inspiradora na pandemia, seja para doar – nós doamos R$ 60 milhões em produtos –, seja para implantar programas como Unidos pela Vacina. Tudo isso mostrou que a economia pode ser mais colaborativa.

Apesar disso, não faltou uma liderança no setor público para nortear as ações?
Tivemos muita carência de, no mínimo, informação. Temos pessoas presentes em cerca de 90 municípios do Brasil. Não tínhamos facilidade de acesso à informação, de como estava a contaminação, os níveis de ocupação de UTIs em cada cidade. Nós criamos uma plataforma própria de acesso à informação. Não havia nenhum local onde essas informações estavam disponíveis para uma gestão ativa. As empresas se tornaram grandes centros de informação.

Estamos partindo para um novo normal ou para um antigo anormal?
Novo normal vai seguir anormal. Pelo menos no Brasil. Todos os países têm suas anormalidades. Sou uma brasileira apaixonada, mas não iludida. Os próximos 18 meses serão muito desafiadores. Toda volatilidade da política e da economia cria uma imprevisibilidade. Para nós, essa é a palavra mais difícil de encarar. Temos de fazer uma gestão eficiente com variáveis desconhecidas.

O consumidor tem mudado seu comportamento?
No nosso mercado, o consumidor brasileiro sempre foi muito exigente. Limpeza sempre foi importante. E existe a preocupação de que a marca e os produtos dela vão além de sua promessa funcional. O consumidor está mais consciente, preocupado com sustentabilidade, diversidade, questões de raça e gênero.